quinta-feira, 11 de novembro de 2010



A Morte e o Mito

O domingo, 25 de abril de 1852, se iniciara sombrio na casa do Dr. Inácio Manuel Álvares de Azevedo, no Rio de Janeiro. Seu filho Manuel Antônio, o Maneco, pedira à mãe, D. Maria Luísa, que mandasse celebrar uma missa em seu quarto de doente. Sentia que, depois de mais de 40 dias prostrado no leito, vítima de uma série de males, que se manifestaram violentamente após uma queda de cavalo, chegara a hora da morte - que tanto cantara em seus versos de adolescente, apaixonado pelos delírios macabros de Byron e Musset.
Após se confessar ao padre arrumado às pressas, pediu à mãe, grávida de seu oitavo irmão, que se retirasse do quarto, pois precisava descansar. Por volta das 4 horas da tarde, com o auxílio do irmão Quinquim - quatro anos mais moço - ergueu-se um pouco do leito, beijou a mão de seu pai e, a custo, exclamou: "Que fatalidade, meu pai!"
Tentou ainda dizer algumas palavras, mas a boca já se contraía e o corpo jazia imóvel nos braços do irmão.
"Maneco! Maneco!..." Gritavam Quinquim e o Dr. Inácio Manuel.
Do quarto ao lado, D. Maria Luísa, ouvindo e entendendo, soltou um grito desesperado e desfaleceu.
No enterro, discursou o parente Joaquim Manuel de Macedo, médico, professor e já um dos mais importantes e populares romancistas do Brasil, autor de A Moreninha (1844). Entre outros elogios, afirmava que "Deus tinha acendido na alma do mancebo aquele fogo sagrado da poesia, que eleva o homem acima da terra e faz correr de seus lábios, em cânticos sonoros, a linguagem do inspirado".
No dia 27 de abril, o Correio Mercantil, jornal onde então trabalhava Manuel Antônio de Almeida, publicou, na primeira página, uma nota em que se lia: "Nesse jovem, perdeu o Brasil um de seus mais esperançosos filhos, um coração patriótico e dedicado, um poeta cujos vôos deviam elevar-se a grandes alturas, um advogado que prometia em breve conhecer todos os arcanos das ciências jurídicas, pois que ainda no fervor dos anos já lhe eram igualmente familiares os poetas e literatos da Itália, da Alemanha, da França e da Inglaterra, assim como os escritos dos mais abalizados jurisconsultos e publicistas."
Quase um mês depois, a 22 de maio, em São Paulo, a sociedade acadêmica a que Maneco pertencia, o Ensaio Filosófico Paulistano, realizava uma sessão fúnebre em sua homenagem, presidida por Amaral Gurgel. Nos vários discursos e poemas apresentados, "gênio" é a palavra mais usada para caracterizá-lo.
Ao morrer, Manuel Antônio Álvares de Azevedo havia publicado apenas alguns poemas e discursos em revistas acadêmicas de circulação restrita aos estudantes de Direito de São Paulo. Já era, no entanto, considerado, por aqueles que o conheciam, uma grande esperança poética e intelectual.
A sua morte, antes que chegasse a completar o vigésimo primeiro aniversário, privou-nos, nas palavras de José Veríssimo, "daquele que seria talvez o máximo poeta brasileiro". Seria... Talvez... O certo é que a morte jovem criou, como sempre, um mito. O mito do gênio doente e mórbido, que previra a própria morte em "Se Eu Morresse Amanhã":

   "Quanta glória pressinto em meu futuro!
         Que aurora de porvir e que manhã!
         Eu perdera chorando essas coroas
         Se eu morresse amanhã!"


Vida breve: vida louca?

"Nada que é tudo", todo mito é enigmático. A tão curta vida de Álvares de Azevedo é fonte de inúmeras polêmicas entre seus biógrafos. Discute-se desde o local onde teria nascido, até a causa médica de sua morte. Principalmente, polemiza-se em torno da sua conduta quando estudante em São Paulo. Libertino devasso ou estudante recatado? Vamos aos fatos que parecem certos.
Sabe-se que o autor da Lira dos Vinte Anos nasceu no dia 12 de setembro de 1831, em São Paulo, onde seu pai era ainda quintanista da Faculdade de Direito. Tudo indica que teria nascido na biblioteca da casa do avô, embora haja uma lenda de que o parto teria ocorrido na biblioteca da própria Faculdade de Direito. De qualquer modo, Álvares de Azevedo teria nascido como, de resto, passaria toda a vida: entre livros.
Formado, seu pai se transfere para a capital, o Rio de Janeiro, iniciando logo brilhante carreira jurídica. Aos quatro anos de idade, Maneco depara-se, pela primeira vez, com a morte. O falecimento de seu irmãozinho, Manuel Inácio, deixa marcas profundas sobre o jovem sensível. Alguns biógrafos atribuem ao choque com a morte do irmão uma febre que o domina entre os cinco e os seis anos, quase o mata, e que o deixaria debilitado pelo resto da vida. Certamente o poema O Anjinho, da Lira dos Vinte Anos, traduz, anos depois, a forte impressão que o episódio lhe causou:

      "Não chorem! lembro-me ainda
            Como a criança era linda
            No frescor da facezinha!
            Com seus lábios azulados,
            Com os seus olhos vidrados
            Como de morta andorinha!"

Ainda adoentado, inicia-se nos estudos com pouco brilho. Ingressa, aos nove anos, no Colégio Stoll, onde logo se destaca, sendo considerado, pelo professor Stoll, "o melhor dos alunos, pela inteligência, pelo espírito, pela amável alegria e, principalmente, pela bondade".
Terminado o primário, já fala francês e inglês e ingressa no célebre Colégio Dom Pedro II para cursar o ginásio. Lá, aprende o alemão, o grego e o latim e tem aulas de filosofia com o poeta Gonçalves de Magalhães, introdutor do romantismo no Brasil. Sempre enfrentando problemas de saúde, recebe com menção honrosa, em 1847, o título de Bacharel em Letras, o equivalente, hoje em dia, ao diploma do Segundo Grau.
Em 1848, ingressa na Academia de Ciências Jurídicas de São Paulo. A partir da sua transferência para a capital paulista até a sua morte, em férias, no Rio de Janeiro, a história se mistura com a lenda e fica difícil distinguir o homem do mito.
Nas suas cartas à família e aos amigos cariocas, assim como na peça Macário, Maneco revela um imenso tédio em morar na pequena "cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas" com "ladeiras íngremes e ruas péssimas", nas quais "era raro o minuto em que não se esbarrasse a gente com um burro ou com um padre". A capital paulista era, então, habitada por não mais de 15 mil pessoas, que viviam escandalizadas com as aventuras devassas de uma sociedade secreta de estudantes, fundada em 1845, conhecida como Sociedade Epicuréia. Seus membros, alunos da Academia, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de personagens do Lord Byron e tinham, como objetivo principal, colocar em prática as "extravagantes fantasias" do poeta inglês. Realizavam orgias intermináveis e, diz a lenda, cerimônias macabras nos cemitérios paulistanos.
Chegando a essa São Paulo, Álvares de Azevedo trava logo amizade com dois poetas estudantes, notórios boêmios, Aureliano Lessa e o futuro romancista Bernardo Guimarães. Juntos, planejam publicar um livro de versos, intitulado As Três Liras.
Introvertido, estudioso, Álvares de Azevedo leu com avidez e produziu vertiginosamente durante os quatro anos de Faculdade. Escreveu os poemas reunidos nos livros Lira dos Vinte Anos e Poesias Diversas; os poemas longos O Poema do Frade e O Conde Lopo; o drama Macário; as narrativas de Noite na Taverna e O Livro de Fra. Gondicário; quase uma centena de páginas de estudos literários; alguns discursos acadêmicos e ainda incontáveis cartas pessoais enviadas ao Rio de Janeiro.
Ficaria muito difícil, portanto, a um trabalhador tão incansável, de saúde sempre abalada, ter-se misturado com freqüência às orgias sucessivas e aos excessos dos companheiros boêmios, menos dedicados à literatura e ao estudo. Vida louca? Certamente a dos que o cercavam. A de Maneco parece, aos estudiosos mais sérios, ter se passado fundamentalmente entre os livros e os sonhos.
Duas mortes marcaram profundamente o poeta nos seus últimos anos de vida. Em setembro de 1850, o quintanista Feliciano Coelho Duarte comete o suicídio. Em setembro de 1851, morre seu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior. No discurso fúnebre do amigo, Álvares de Azevedo diria: "Cada ano uma vítima se perde nas ondas, e a sorte escolhe sorrindo os melhores dentre nós".
No seu quarto de pensão, compõe um poema dedicado ao amigo e escreve na parede:

                     1850 - Feliciano Coelho Duarte
                     1851 - João Batista da Silva Pereira
                     1852 - ...

Entre os anos letivos de 1851 e 52, vai passar as férias com a família. Passeando a cavalo, a conselho médico, com seu cão Fiel pelas ruas do Rio de Janeiro, para amenizar os sintomas da tuberculose que o afligia, sofre uma queda. Após uma operação, segundo a família, sem anestesia, para a remoção de um tumor na fossa ilíaca - provavelmente uma apendicite supurada - e depois de 46 dias de agonia, deixa a vida para virar lenda.

Extraído do site "Organon"

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